“Antigamente, no tempo da criação, os animais, as aves e as florestas falavam igual às pessoas e apareciam com o corpo de pessoas. Mas os antepassados, na origem, não deixaram que eles vivessem como eles. Quando faziam algumas coisas, como namorar escondido, os animais, as aves e as árvores viam e depois iam contar. Os antepassados ficavam bravos com eles e reclamavam. Aí, os donos dos animais e da floresta ficavam com vergonha. Os donos pensaram em mudar a língua e o corpo deles. Mudou todo o jeito deles. Não falavam mais a mesma língua, mudou também o corpo deles. Cada dono deu para eles uma vestimenta, a roupa deles. Por exemplo: roupa de queixada, roupa de árvore, de urubu”.
Essa é uma passagem do gracioso livro I’Ã – para nós não existe só imagem, organizada pelo Programa de Formação de Pesquisadores Wajãpi (2015).
A obra traz relatos orais de mitos indígenas que refletem sobre aquilo que comumente chamamos de alma, memória ou experiência, algo como um princípio vital que todos nós possuímos. Assim, segundo essa concepção mitológica, quando manuseamos ou construímos algo, deixamos nossas impressões anímicas nesse objeto. O mesmo aconteceria quando sonhamos ou mesmo levamos um susto: nossa alma e nossa memória “viajariam”, podendo às vezes se perder, para só depois voltar.
Da mesma forma, esse mesmo princípio vital também nos ajudaria a perceber muitas coisas e até mesmo saber o que pode acontecer no futuro. No entanto, ao morrermos, o princípio vital se espalharia, parte ficando na terra e outra indo direto para o céu.
E é assim que o livro apresenta, de forma lúdica e clara, conceitos como os de Kwaraya por erã – sombra sem vida, Taywerã – espírito do morto, Opiwarã – substâncias, Ipirerã – um tipo de roupa, Topasã – um tipo de caminho e A’ ãga – imitação ou duplo.
A partir da compreensão dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e de suas singulares perspectivas de vida, aprendemos a valorizar sua cultura e a respeitá-la como um patrimônio Wajãpi, mas também como patrimônio humano.
Apresentar esse livro aos estudantes pode ser uma ótima oportunidade de discutir alguns aspectos da filosofia de vida dos povos originários e de aprendermos o valor de reverenciar o sagrado expresso em seus mitos.